segunda-feira, 7 de maio de 2018

As Missões Laicas Republicanas e os Equívocos Missionários e Históricos da Igreja Católica



Este é o título da mais recente obra do Académico Honorário Pedro Marçal Vaz Pereira, a lançar pelas dezassete horas e trinta minutos da próxima quarta-feira, dia 16 de Maio, na Sala do Actos da Academia Portuguesa de História, na Alameda das Linhas de Torres, 198-200, em Lisboa. A obra será apresentada pelo Professor Doutor António Ventura, Professor Catedrático da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e Académico de Número da Academia Portuguesa da História.
A obra, com extensa bibliografia a servir de suporte documental, é constituída por um volume de capa mole, 17 cm x 20 cm, de 344 páginas. A edição é do autor e tem o preço de lançamento de 15 euros, sendo posteriormente comercializada em Lisboa nas Livrarias Barata e Sinfonia (Avenida de Roma) e Pó dos Livros (Avenida Duque de Ávila).
O autor
O autor, filatelista eminente, escritor e jornalista filatélico, subscreve vasta colaboração em revistas e catálogos de exposições filatélicas, tanto em Portugal como no estrangeiro. É Presidente da Federação Portuguesa de Filatelia (FPF) e foi Presidente da Federação Europeia de Sociedades Filatélicas (FEPA), assim como director das respectivas revistas “Filatelia Lusitana” e “FEPA News”.
Em 2005 publicou a obra em 2 volumes “Os Correios Portugueses entre 1853-1900. Carimbos Nominativos e Dados Postais e Etimológicos”, editado pela Fundação Albertino Figueiredo, de Madrid. Esta obra veio a ser complementada com um “Suplemento I”, editado em 2013. Neste mesmo ano, o autor publicou “As Missões Laicas em África na 1ª República em Portugal” (2 volumes), que foi distinguida com o Prémio Fundação Calouste Gulbenkian,História Moderna e Contemporânea de Portugal, atribuído pela Academia Portuguesa da História. Em 2015 publicou “O Teatro numa aldeia da Beira - Cernache do Bonjardim", editado pelo Clube Bonjardim.
A obra
No preâmbulo diz-nos o autor: “Em Maio de 2013 foi publicado um livro sobre as Missões Laicas, em 2 volumes, com o título "As Missões Laicas em África Durante a Iª República", de autoria de quem hoje escreve este trabalho. Nesse livro era narrada a verdadeira história das Missões Laicas, baseada em documentos da época, e que comprovavam como a Igreja Católica e os seus historiadores, tinham sempre deturpado historicamente a gran­de organização, que foram efectivamente as Missões Laicas na 1a República.
Esta falta de rigor histórico, tendencioso e lesivo da verdade histórica, professado por estas pessoas ligadas à Igreja Católica, conduziu durante muitos anos, a uma imagem completamente distorcida e falhada, das Missões Laicas, quando assim não foi.” E acrescenta: “Organizaram-se então as hostes da Igreja, contra este meu trabalho sobre as Missões Laicas. Levaram então a cabo um conjunto de iniciativas de completa intolerância, que pensavam rectificativas da afronta para a sua ver­dade, que eles tinham contado, durante tantos anos, sobre as Mis­sões Laicas Republicanas, e que afinal de verdade histórica, tinha bem pouco. Tentaram emendar a mão, com textos absolutamente lamentáveis, bem ao estilo destes terrenos fundamentalistas, que têm na Igreja a sua grande obsessão, e no seu deus o único, a quem respondem, e a quem querem, que todos respondam!!”
Em seguida, dá-nos conta de que: “Foi então publicado um livro, de autoria de Amadeu Gomes de Araújo, ex-padre ordenado no Seminário de Cernache do Bon­jardim e membro do grupo do Sr. Padre Manuel Castro Afonso, sendo este dedicado às Missões Laicas Republicanas, com o título Um Erro de Afonso Costa - As Missões Laicas Republicanas (1913-1926). Este é um trabalho de puro exercício primário e básico, de anti republicanismo beato.” O preâmbulo continua e através dele ficamos a perceber que neste seu novo livro, Pedro Vaz Pereira procura repor a verdade dos factos.


Pedro Marçal Vaz Pereira, o autor.

sexta-feira, 4 de maio de 2018

Bonecos de Estremoz: não há identidades puras


Álvaro Borralho (Sociólogo)

Em 1993, no âmbito do curso de Sociologia no ISCTE (Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa), hoje ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa, apresentei uma dissertação de licenciatura, obrigatória na altura, designada As Artes do Barro. Contribuição para o estudo dos Bonecos de Estremoz. Realizada no espaço académico de um Seminário de Sociologia da Cultura, pretendia com este estudo, tal como se diz na Introdução, alargar a pesquisa ao conjunto dos barristas que na altura se dedicavam à produção de bonecos, assim como ao conjunto de agentes individuais e institucionais que difundiam, comercializavam e que, de alguma forma, tinham contacto com a barrística. Um ano antes tinha realizado um estudo apenas com os Irmãos Ginja – devido ao facto de o seu enquadramento ser completamente distinto dos restantes – e o alargamento permitia inquirir não só o quadro da produção e comercialização bonequeira, nas mãos dos barristas, mas sobretudo da difusão, lógica que, como se defende na dissertação, escapa aos barristas. Tudo possibilitado pelo olhar de dentro de Joaquim Vermelho, sempre disposto a partilhar os seus conhecimentos coms os outros, incansável no disponibilizar de informação e de debater os temas que sempre o apaixonaram. Ficará para sempre na memória uma visita que fizemos ao Museu em que ele foi falando de cada local, de cada vitrine, de cada material exposto e assim o percorremos todo. Mais de 2 horas de visita, na qual toda a informação foi gravada, pois de outra forma seria impossível registá-la.
O estudo é de Sociologia e este é o seu compromisso central. Quer isto dizer, que não se trata de uma defesa dos bonecos, nem de um ataque, mas de uma visão problematizadora e crítica desta produção artesanal. Quem quiser lá encontrar um discurso de defesa da patrimonialização ou de justificação ideológica da barrística, o que vai dar no mesmo, sairá desiludido. Por outras palavras, o estudo prossegue objectivos que não se limitam ao uso instrumental, simbólico e político dos bonecos. Aliás, esta é justamente uma dimensão de análise, aquela talvez que gere mais controvérsia por inquirir os quadros mentais subjacentes à defesa, valorização e revalorização do artesanato em geral, e da barrística em particular. Em suma, e para lá do discurso ahistórico e vago, os bonecos de Estremoz não escaparam, nem escapam, às tendências mais gerais de valorização do artesanato, de uso instrumental e ideológico e de enquadramento político que cruzam com certos desenvolvimentos históricos nacionais. Em especial, em certos períodos: nos finais do século XIX, altura em que são recuperados pelo patriarca da família Alfacinha, cruzam com o movimento romântico de recuperação de tradições por oposição à sociedade científica-industrial a despontar. Depois, com o início do Estado Novo, como revalorização do ser português e base da ideologia do regime, que coincide com a recuperação encetada por Sá Lemos. E, finalmente, já no período democrático, aproveitando da valorização geral do artesanato como expressão do povo – “arte do povo” – na senda da revalorização de tudo o que é popular. O conjunto de feiras, certames, exposições, o museu municipal (com dois barristas ao vivo), as publicações, etc., tudo isto junto contribuiu e reforça o carácter de uma difusão assente na patrimonialização e na apropriação ideológica duma produção com vista à sua manutenção, mas fora do controlo dos próprios barristas. Ou seja, e o estudo conclui assim: não há identidades puras, as identidades são sincréticas, quer dizer, impuras, com contradições, confusas. E os bonecos de Estremoz não escapam a esta lógica: não há uma identidade dos bonecos, há identidades (no plural), quer dizer, tendências diversas, várias visões, concepções e estratégias para as quais concorrem diversos agentes que não só os barristas.
É este, em resumo, a conclusão do estudo. De como a partir de uma mera produção em barro, quase desaparecida em finais do séc. XIX, e sobretudo realizada e recuperada para proveito económico, se chegou ao séc. XX, com várias visões, tendências e investimentos, materiais e simbólicos, num campo (o conceito sociológico nuclear da pesquisa) atravessado por concepções contraditórias (sociologicamente, as lutas), muito marcada pelo enquadramento institucional do Estado (instituto de emprego, câmara, etc.), e de como se procura assentar esta produção a uma identidade local (sociologicamente, identidade social).
Os bonecos de Estremoz de hoje, não são os bonecos dos princípios do séc. XX e muito menos os dos finais do séc. XX. Eles obedecem a outras ideias, são feitos a partir de outros elementos, quer materiais, mas sobretudo simbólicos (as ideias investidas na sua produção e preservação). Há continuidades e permanências, por exemplo, os temas com que são feitos, mas isso é muito pouco para reduzir a realidade da barrística apenas à unidade temática. Eles são diferentes dos do passado, apesar de aparentemente não o serem, contribuem para objectivos diferentes e obedecem as lógicas sociais diferentes. Para não ir mais longe, quem nos anos 1970, sonharia fossem classificados agora pela UNESCO ou pensasse, sequer, na possibilidade de uma candidatura? E quando for feita a história social deste processo de candidatura e de classificação não se irá, de novo, deparar com algumas destas e de outras tendências e estratégias? De velhas e de novas visões e concepções? A realidade muda, a tradição muda e só na aparência tudo se mantém igual. Os bonecos não são apenas bonecos, são a expressão material de uma vivência social. E foi isso que se pretendeu restituir com a análise.
Agora que fui obrigado a revisitar um texto que não lia há vários anos, mas cujo convite por Hernâni Matos, em boa hora, me levou a isso, para este pequeno texto – que temo fique maior do inicialmente desejado –, continuo a gostar das conclusões. Porventura seria possível ir um pouco mais longe, mas, no geral, revejo-me, apesar de alguns erros que por lá estão, passados estes 25 anos. Permito-me apenas destacar dois traços que estão na Conclusão e que ligo com a recente classificação da UNESCO e o pretexto para este texto. A obediência à disciplina tradicional como uma regra social imposta pela unidade estilística e que obriga os barristas a seguirem-na e a necessidade de patrimonialização e de museificação que caracterizam a sociedade moderna. As duas coisas andam juntas e não são fruto do acaso: resultam de processos sociais complexos. Mas, mesmo desconhecendo os documentos oficiais da candidatura, julgo não errar muito se afirmar que talvez tenham sido estas duas tendências as mais valorizadas na candidatura e na classificação. Os significados disso teriam de ter suporte de análise, o que obviamente não fiz, e por isso me escuso a comentar. Num certo sentido, o que está no estudo que elaborei em 1993 antecipou algum do seu desenvolvimento recente.
Uma última observação vai para o facto de me ter arrependido de não ter publicado o estudo em livro. A isso fui convidado por José Guerreiro, quando foi vereador da Câmara Municipal de Estremoz, no mandato de 1994-97. Devia tê-lo feito, não por vaidade ou orgulho pessoal, que dispenso, mas pelo possibilitar de um outro olhar sobre a barrística. Espero que este resumo, ainda assim, possa contribuir para um outro conhecimento sobre os bonecos de Estremoz.


quinta-feira, 3 de maio de 2018

Despedida Breve


Hernâni Matos (Cronista do E, que vai de férias e tudo.).

Esta coluna teve início em 22 de Maio de 2014 no número 104 deste jornal. Desde então decorreram 4 anos e esta coluna foi editada 96 vezes, o que se nos concede louros pela tenacidade, também nos confere especiais responsabilidades perante os leitores, nossos companheiros de estrada jornalística.
Estes 95 números constituíram uma caminhada com o leitor, ainda que não houvesse nem haja caminho, como nos ensina o poeta sevilhano António Machado (1875-1939): Caminhante, são teus rastos / o caminho, e nada mais; / caminhante, não há caminho, / faz-se caminho ao andar. / Ao andar faz-se o caminho, / e ao olhar-se para trás / vê-se a senda que jamais / se há-de voltar a pisar. / Caminhante, não há caminho, / somente sulcos no mar...
Esta coluna assumiu-se então como trincheira, tribuna e espelho. Trincheira na defesa da portugalidade, da língua portuguesa, do regionalismo, da tradição, da alma alentejana, da liberdade de pensar e do direito de opinar. Tribuna de defesa da razão, da justiça, da solidariedade, do amor, da liberdade e da procura de novos caminhos. Espelho dos nossos estados de alma, das nossas preocupações, das nossas motivações, dos nossos anseios, dos nossos sonhos e dos nossos desejos. E na altura também proclamámos: Não seguiremos cartilhas, não seremos a voz do dono, nem faremos de papagaios reais. Não somos súbditos de ninguém, nem prestamos vassalagem a ninguém. Temos dificuldade em dobrar a coluna vertebral, já que a nossa mãe nos pariu assim.
Decorridos que são 4 anos, é possível constatar que assim foi e que não ocorreu qualquer desvio relativamente aos princípios formulados. Esta coluna abrigou crónicas que constituíram exercícios de cidadania na defesa do património cultural material e imaterial local e regional, bem como da qualidade de vida. Defesa igualmente da identidade cultural alentejana, da valorização das tradições e da Arte e Cultura Populares.
Como exercícios de cidadania, as crónicas procuraram exercer junto do leitor, um papel pedagógico, simultaneamente informativo e formativo, ao apresentar questões e destacar problemas cuja resolução urge em termos de “Res publica”. Foram crónicas que tiveram um retorno positivo por parte dos leitores e que constituíram um incentivo no sentido da sua continuidade. Tem sido com prazer que temos caminhado com o leitor, já que temos o jornalismo na massa do sangue. Apesar de tudo, há outras solicitações a que estamos submetidos, nomeadamente no campo da edição literária e que nos estão a exigir um esforço redobrado, que não é compatível com o exercício regular do jornalismo. Daí que tenhamos sido obrigados a tomar opções, que se traduziram na interrupção da actividade jornalística. Esta não constitui uma deserção ou uma rendição do Franco-atirador, já que como sentinela do Povo, o nosso lugar é aqui no exercício da cidadania e com espírito de missão laica, em defesa de valores universais, democráticos e plurais, dos quais não prescindimos.
Cremos que o leitor respeitará as nossas opções e regressaremos assim que pudermos. Parafraseando o conto de José-Augusto França, diremos que será uma “Despedida Breve”.

Cronista do E, que vai de férias e tudo.
(Texto publicado no jornal E nº 199, de 03-05-2018) 

sexta-feira, 20 de abril de 2018

Porta de Évora: Até quando?


1 - Porta de Évora vista do exterior (Finais do séc. XIX). Nesta época já tinha sido
suprimida a ponte levadiça que lhe dava acesso. Fotografia de autor desconhecido,
posterior a C. J. Walowski (1891).


Sob a epígrafe “PORTAS DE ÉVORA EM RECUPERAÇÃO”, uma newsletter do Município de Estremoz, datada de 11 de Agosto de 2017, informava que o sistema elevatório e as correntes de ferro suspensoras da ponte levadiça tinham sofrido actos de vandalismo, que levaram o Município a proceder imediatamente à sua retirada para recuperação, a qual prometia ser breve. Decorridos que são oito meses, ainda não foi reposto o equipamento vandalizado, o que causa estranheza.
História da Porta
No decurso da Guerra da Restauração houve necessidade de defender o reino da ofensiva espanhola. Foi o que aconteceu em Estremoz que ganhou importância no contexto militar nacional, uma vez que funcionava como 2ª linha de defesa do território, sobretudo em termos logísticos, já que armazenava armas e mantimentos e aquartelava tropas. Foi assim que a Praça de Estremoz foi ampliada e fortemente protegida por um sistema defensivo abaluartado, que abraça o centro histórico num perímetro com mais de cinco quilómetros, cuja maior parte ainda hoje subsiste. As obras decorreram entre 1642 e 1671 e as portas monumentais só foram concluídas entre 1676 e 1680. 
A Porta de Évora, virada a Sul, recebeu a sua designação por através da estrada de São Lázaro conduzir à estrada que por Évora Monte segue em direcção a Évora. Em mármore da região e inacabada foi dedicada a Santiago e no seu nicho deveria figurar a escultura do patrono, o que nunca veio a acontecer. É a entrada exterior para o ancestral Bairro de Santiago e a ela se acedia através de uma ponte levadiça, cujo sistema elevatório e correntes de ferro suspensoras, já foram reconstituídos posteriormente. A Porta terá sido também munida de portas em madeira, que foram abatidas à existência quando deixaram de ter serventia. 
Memórias da Porta
A Porta constitui a moldura em pedra duma paisagem rural diversificada que se estende até aos confins da Serra de Ossa. Tem também um espectro largo de memórias que vão desde a Guerra da Restauração até aos dias de hoje. São memórias cuja sequência temporal constitui um autêntico documentário de estórias de vidas que aqui são contadas, para além daquelas que ainda ficam por contar. São também a memória do traço identitário do engenheiro militar que as gizou, bem como a memória sonora das pancadas malhadas pela maceta no escopro dos pedreiros de seiscentos para assim aparelharem os calhaus da região.
Pela Porta transitaram cavaleiros, infantes e artilheiros que guarneceram a praça-forte no decurso da Guerra da Restauração e que daqui partiram para travar batalhas como a Batalha das Linhas de Elvas (1659), a Batalha do Ameixial (1663) e a de Montes Claros (1665).
Por ali passaram carradas de pão destinadas ao exército da província do Alentejo fabricado na Padaria Militar que funcionou no edifício que desde 1740 serviu como Assento Real e Armazém de Guerra. Em tempo de guerra chegaram a ser ali produzidos, diariamente, 40.000 pães.
Por ali saíram desde sempre, homens e mulheres do Povo que iam vender a sua força de trabalho nos campos vizinhos, bem como aqueles que por necessidade de subsistência, dali partiam para a recolha de espargos, cardinhos, alabaças e iam ao rabisco no tempo da azeitona.
Por lá caminharam oleiros como Mestre Cassiano, em demanda do barro com que torneavam o vasilhame que vendido no mercado, constituía o seu ganha-pão diário.
Por ali passava o João Caixão, homem simples, vagamente parecido com o Cantiflas, que recolhia desperdícios de comida para alimentar os porcos que com ele viviam nas ruínas da Ermida de São Lázaro.
À saída da Porta
À saída da Porta de Évora pode-se virar à esquerda ou à direita. O caminho do lado esquerdo conduz à chamada Aldeia das Ferrarias, que em 1758 tinha 20 fogos, tendo o topónimo origem no facto de ali estarem sediados os ferreiros que tinham a seu cargo a fundição da artilharia utilizada pelos militares. Indo pelo lado direito entra-se na chamada estrada de São Lázaro, que à esquerda revela as ruínas da Ermida de São Lázaro, associada a uma leprosaria atestada documentalmente desde os finais do século XIV.
A modificação da paisagem rural
A estrada de São Lázaro era bordejada por olivais e trigais, que na época das colheitas davam para arregalar a vista. Actualmente, os olivais e os trigais são memórias de outros tempos. Agora aquilo é vinhedo de João Portugal Ramos Vinhos S.A., eufemisticamente designados por “Vila Santa”. Hoje já não dá para na Quinta-feira da Ascensão ir ali colher a espiga, a não ser para recolher uma ou outra papoila tresmalhada.
Onde é que está o encanto?
Pela estrada de São Lázaro transitam turistas de posses, em direcção à Pousada gerida pelo Grupo Pestana, onde são atendidos principescamente. Logo à entrada da Porta são confrontados com a supressão do sistema elevatório e as correntes de ferro suspensoras da ponte levadiça, que muito valorizavam aquela Porta. Deparam ainda com o aspecto desagradável das paredes interiores da Porta, repletas de caruncho.
Mais tarde acabam por tomar conhecimento da realidade social que é o Bairro de Santiago, a heróica “Ilha brava”, que há muito devia ter sido objecto de reabilitação urbana por parte do Município.
Decerto que a memória fotográfica que consigo irão transportar, não será um cartaz promocional que faça outros acreditar que “Estremoz tem mais encanto!”, como proclama o slogan do marketing municipal.

Cronista do E, defensor do património e tudo.
(Texto publicado no jornal E nº 198, de 19-04-2018)


2 - Porta de Évora vista do exterior (Anos 40 do séc. XX). Ainda não tinha sido
reconstituída  a ponte levadiça, provida de sistema elevatório e correntes de ferro
suspensoras, o que terá ocorrido no período 1967-1970 em que decorreram as
obras de adaptação do Castelo de Estremoz a Pousada da Rainha Santa Isabel.
Fotografia de Rogério Carvalho (1915-1988).

 3 - Porta de Évora vista do exterior (2016). É visível a ponte levadiça suspensa por
correntes. Fotografia de Pedro Perdigão.

4 - Porta de Évora vista do seu interior (2015). Visível a existência das correntes e
do sistema elevatório da ponte levadiça. As paredes caiadas de branco não
apresentam vestígios de caruncho. Fotografia de Pedro Perdigão.

 5 - Porta de Évora vista do seu interior (2018). Visível a supressão das correntes e
do sistema elevatório da ponte levadiça. Observável ainda nas paredes o caruncho
que as reveste, fruto de infiltrações aquosas que a incúria dos responsáveis não
combateu. Até quando? Fotografia de Hugo Silva.

quarta-feira, 18 de abril de 2018

Hoje é dia de adivinha


Ilustração da capa do Almanaque BORDA D’ÁGUA, um veículo de transmissão de
adivinhas e de outras formas de Cultura Popular, que ainda se continua a publicar.

É sabido que sou um estudioso da Cultura Popular. Em particular interessa-me todo o tipo de Literatura de Tradição Oral. A ela pertencem o cancioneiro popular, o adagiário, o adivinhário, a gíria popular, os trava línguas, as lengalengas, as parlendas, as alcunhas, a antroponímia e a toponímia.
Ao longo do tempo tenho integrado na minha biblioteca pessoal, os espécimes dessa literatura, que vou conhecendo e adquirindo nos alfarrabistas. Como tal, neste como noutros domínios, a minha biblioteca está em permanente construção. Por isso encontrar uma nova fonte bibliográfica de que não dispunha, constitui sempre um momento de prazer muito especial.
Por outro lado, existe ainda o prazer redobrado porque inesperado, de chegar ao meu conhecimento por transmissão oral, um exemplar desconhecido e que ainda não tinha sido fixado no papel, para ser perpetuado no tempo e transmitido a toda a comunidade.
Nutro um gosto especial pelas adivinhas que nos eram ensinadas pelos familiares nas longas noites de Inverno e se seroava. Não havia ainda televisão e muito menos Internet ou redes sociais. Conversava-se à braseira ou à lareira e partilhava-se com os outros aquilo que se sabia. Estamos longe desses tempos, mas é possível suprir essa lonjura recorrendo a compilações de adivinhas como as de Teófilo Braga, José Leite de Vasconcellos, Alberto Vieira Braga, Augusto Castro Pires de Lima, Fernando de Castro Pires de Lima, Manuel Viegas Guerreiro e José Viale Moutinho.
Foi com alegria que recentemente tomei conhecimento duma adivinha que me foi transmitida pelo senhor Zé dos bois e que de seguida formulo:  
O indivíduo não é gerente comercial, nem director de marketing.
O sujeito não é relações públicas, nem tampouco chefe de vendas.
A criatura não é chefe da contabilidade, nem mesmo fiel de armazém.
O fulano não é afinador de motores e muito menos bate-chapas.
O fulano não é pintor de carroçarias, nem sequer lavador de carros.
O beltrano não é limpador de vidros, tal como não é arrumador de carros.
O sicrano não é empregado da limpeza, nem ao menos segurança.
Aquilo não é a TV pelo que a figura não pode ser a do emplastro.
O que é então?
Adivinhe quem for capaz.

Cronista do E, estudioso da Cultura Popular e tudo.
(Texto publicado no jornal E nº 198, de 19-04-2018) 

domingo, 8 de abril de 2018

ESTREMOZ - Cruz da Igreja de Santa Maria


1 - Igreja Paroquial de Santa Maria no início do séc. XX. No topo da fachada e em
posição central é visível a cruz em mármore. Imagem de um bilhete-postal ilustrado,
edição Faustino António Martins (Lisboa), com o número 1204. No verso a data do
carimbo de expedição dos correios é de 1904. Arquivo do autor.

A cruz como sinal sagrado e objecto de culto
O passado domingo foi Páscoa, festividade religiosa em que os cristãos celebram a Ressurreição de Jesus Cristo depois da sua morte por crucificação, que ocorreu na “Sexta-Feira Santa” (sexta-feira antes do Domingo de Páscoa), data em que é evocado o julgamento, paixão, crucificação, morte e sepultura de Jesus, através de diversos cerimónias religiosas.
Segundo os Evangelhos, Jesus foi condenado a morrer na cruz numa sexta-feira e o responsável pela sentença foi Pôncio Pilatos, prefeito da província romana da Judeia entre os anos 26 e 36 d.C. apesar de não ter encontrado nele nenhuma culpa. Todavia os líderes judeus queriam a sua morte, por considerarem blasfémia Jesus dizer-se filho do Messias. Vejamos o que nos dizem os Evangelhos.
Jesus foi preso no Jardim de Getsémani (Marcos 14:43-52) e foi submetido a seis julgamentos – três por líderes judeus e três pelos romanos [João (18:12-14), Marcos (14:53-65), Marcos (15:1), Lucas (23:6-12), Marcos (15:6-15)].
Pilatos tentou negociar com os líderes judeus ao permitir que flagelassem Jesus, mas eles rejeitaram a proposta por não os satisfazer e pressionaram Pilatos a condená-lo à morte. Pilatos entregou-lhes então Jesus a fim de ser crucificado tal como eles pretendiam (Lucas 23:1-25). Os soldados escarneceram Jesus e vestiram-lhe um manto escarlate e impuseram-lhe na cabeça uma coroa de espinhos (Mateus 27:28-31).
Jesus veio a ser crucificado num lugar chamado Gólgota, que quer dizer “Lugar da Caveira”. Por cima da sua cabeça puseram uma tabuleta com o motivo da sua condenação: “JESUS NAZARENO, O REI DOS JUDEUS” [João (19,19), Lucas (23,38)]. Na ocasião foram também crucificados dois ladrões, um à direita e outro à esquerda de Jesus. (Mateus 27:33-38). A escuridão cobriu então o céu durante três horas (Lucas 23:44), até que Jesus deu um forte grito: “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito”. Dizendo isto, expirou. (Lucas 23:46). Os relatos evangélicos mostram que Jesus entregou livremente a vida a Deus pela redenção da humanidade.
O sentido espiritual da cruz indicado pelo próprio Jesus (Mateus 10:38), fez com que ela passasse a ser sinal sagrado e objecto de culto.
Igreja Paroquial de Santa Maria
A Igreja Paroquial de Santa Maria de Estremoz terá sido projectada pelo arquitecto Miguel de Arruda (15??-1563). As obras tiveram início em 1560, a custas de El-Rei D. Sebastião (1554-1578) e do Cardeal Infante D. Henrique (1512-1580), arcebispo de Évora. Só ficaram concluídas no século XVII. A Igreja sofreu consideráveis estragos no pavoroso incêndio dos Armazéns de Guerra, ocorrido a 17 de Agosto de 1698.
A fotografia mais antiga da Igreja que conheço e tenho no meu arquivo, não a reproduzo aqui por falta de nitidez. Data de 1891 e é do fotógrafo C. J. Walowski, que de acordo com o jornal  “O ESTREMOCENSE”, dirigido por Rodam Tavares, trabalhou em Estremoz entre Fevereiro e Maio daquele ano. Nessa fotografia é visível uma cruz no topo da fachada e em posição central. A mesma cruz é visível num bilhete-postal ilustrado, edição Faustino António Martins (Lisboa), do início do séc. XX (Fig. 1). Uma imagem da recuperação da fachada principal ocorrida no período 1967-1970, mostra igualmente a mesma cruz em mármore, exactamente na mesma posição (Fig. 2). Todavia, mesmo antes de no séc. passado, depois do 25 de Abril, ter sido colocada uma antena de telecomunicações no telhado, a cruz agora mutilada encontrava-se inexplicavelmente deslocada para a esquerda da sua primitiva posição central (Fig. 3). Em fotografia de 2008 é visível a cruz mutilada e deslocada para a esquerda da primitiva posição central, tendo à sua direita uma abominável e inestética antena de telecomunicações (Fig. 4), a poluir visualmente o espaço e a deslustrar um edifício que pela sua função deve ter um aspecto imaculado. Em fotografia actual, já não figura a antena de telecomunicações, que foi recentemente removida. Mas lá está a cruz mutilada desviada para a esquerda da sua posição inicial (Fig. 5).
Devolver a dignidade ao templo
Com a remoção da antipática antena de telecomunicações, o aspecto frontal da Igreja Matriz saiu melhorado. Talvez não fosse difícil devolvê-lo à sua dignidade passada, repondo uma réplica da primitiva cruz na sua ancestral localização. Seria ouro sobre azul. Bastaria uma cadeia trinitária de pessoas de boa vontade: um industrial de mármores que doasse a pedra, um canteiro que esculpisse a cruz e um pedreiro que a assentasse no local original, a sinalizar que aquele local é um local de culto. Creio que o Pároco e os paroquianos agradeceriam. É caso para dizer:
- Mãos à obra, irmãos! 
Cronista do E, defensor do património e tudo.
(Texto publicado no jornal E nº 197, de 05-04-2018) 

2 - Igreja Paroquial de Santa Maria – Recuperação da fachada principal ocorrida no
período 1967-1970 em que decorreram as obras de adaptação do Castelo de
Estremoz a Pousada da Rainha Santa Isabel. No topo da fachada e em posição
central é visível a cruz em mármore. Fotografia do SIPA – Sistema de Informação
para o Património Arquitectónico, recolhida no website da Direcção-geral do
Património Cultural. (http://www.patrimoniocultural.gov.pt/pt/).
3 - Igreja Paroquial de Santa Maria - Fachada principal e cobertura exterior em
telhado de quatro águas. Ainda não tinha sido colocada uma antena de
telecomunicações no telhado, mas a cruz em mármore já tinha sido
inexplicavelmente deslocada para a esquerda da sua primitiva posição central
Fotografia recolhida no website da Direcção-geral do Património Cultural (http://www.patrimoniocultural.gov.pt/pt/).
4 - Igreja Paroquial de Santa Maria em 2008. No topo da fachada e deslocada
para a esquerda da posição central é visível a cruz em mármore. Próximo da
posição central e à direita, é visível uma antena de telecomunicações.
Fotografia de João Simas, datada de 1908 e recolhida no blogue RUA DE
ALCONCHEL (http://ruadealconxel.blogspot.pt).
5 - Igreja Paroquial de Santa Maria em 2018. No topo da fachada e deslocada
para a esquerda da posição central é visível a cruz em mármore. A antena de
telecomunicações já foi retirada. Do lado direito estão pousados pombos cujos
dejectos provocaram o entupimento de algerozes e estiveram na origem de te
chovido em Santa Maria (Vide jornal E nº 195, de 08-03-2018). Fotografia de
Hugo Silva.

sexta-feira, 6 de abril de 2018

Bonecos de Estremoz


Otelo Lapa (Director de Cena da Fundação Calouste Gulbenkian)

Quando o professor Hernâni Matos me convidou a escrever umas palavras sobre os bonecos de Estremoz, confesso que pensei que nada tinha a acrescentar ao tema e que tudo já tinha sido escrito. Nessa noite, quando já estava em casa, olhei a minha pequena colecção e esperei que me dissessem alguma coisa, que falassem comigo… e assim foi.
Os bonecos de Estremoz fazem parte das minhas memórias de infância. Na nossa rua havia, até há bem pouco tempo, um lugar maravilhoso onde a família Conceição criou e produziu milhares destes bonecos. Sendo eu colega do Jorge da Conceição Palmela, muito cedo acompanhei de perto este mundo maravilhoso, vi a sua Mãe, a sua Avó, a sua tia Sabina e ele próprio, sentados à volta de uma mesa, com as mãos envoltas no barro e numa panóplia de tacinhas, com diversas tintas que davam cor à indumentária tão garrida e característica destes bonecos. Eu pasmava a ver todo aquele processo, até que um dia, eu próprio, me atrevi a experimentar, ainda existe em casa de meus pais um boneco feito por mim.
Estes bonecos simples e populares, tem uma narrativa dramática muito rica, encarnam e representam profissões, algumas já desaparecidas, a fé popular e o mundo fantástico. São de grande riqueza etnográfica, na medida em que imortalizam os hábitos populares, a forma como se vestiam e até as tarefas do lar. Os meus preferidos são “A Primavera”, “O Amor é Cego” a “Rainha Santa” o  “Presépio em Trono” que é inigualável   (diz-se, que os reis de Espanha têm um exemplar) e a  “Nossa Senhora do Ó”. 
O Figurado de Estremoz ou Bonecos de Estremoz, são um presépio pagão de usos e costumes, salvando assim um “Tempo” perdido no tempo.
Estes patuscos e delicados bonecos, que encarnam a vida dos alentejanos, pelo menos desde o séc. XVII, são um tesouro nacional e merecem ter um Museu em exclusivo, que fosse sendo sempre enriquecido com aquisições aos novos artesãos artistas que perpetuam esta remota tradição de Estremoz.

(Texto publicado no jornal E nº 197, de 05-04-2018)